Certa vez chegou à
aldeia dos índios que habitavam a Foz do Rio Coreaú um grande veleiro,
vindo do além-mar. Homens muito brancos desembarcaram e, aos poucos, os nativos
foram, muito desconfiados, se aproximando. Os visitantes eram criaturas
diferentes, mas amistosos e, lentamente, a amizade se instalou entre estes dois
povos.
O Grande Guerreiro Branco que chegara e possuía consigo uma estranha e perigosa
arma que os nativos chamaram de pau-de-fogo ou pau do trovão, trouxera também,
muitos presentes e a festa foi muito grande! Todos dançaram durante a noite ao
redor da fogueira e a festa só acabou ao raiar do sol.
Junto com o Grande
Guerreiro, veio sua bela filha de 18 anos que os nativos olhavam, embevecidos,
aquela princesa de cabelos doirados. Logo passaram a chamá-la de Jacira, nome
ligado à lua.
O filho do Cacique, Jovem Guerreiro, forte e muito bonito logo se apaixonou,
perdidamente, pela Princesa Dourada e as atenções da moça também eram para ele.
O namoro estava estabelecido! Mas não era um namoro segundo as regras dos
brancos. Era uma manifestação de carinho e admiração muito baseada na
contemplação. Assim, o Jovem Guerreiro passava horas olhando para aquela
princesa sem sequer se atrever a tocá-la.
O dia em que Jacira
tocou o Guerreiro apaixonado com suas delicadas mãos e beijou-lhe a face à moda
de sua sociedade, o jovem Guerreiro sentiu o sangue ferver em suas veias e,
naquela noite, dançou em torno da fogueira como nunca fizera antes.
Mas o tempo passou e
o dia da partida dos visitantes infelizmente chegara...
Quando o jovem índio
apaixonado soube que sua amada partiria para sempre, entrou em profunda
tristeza. O cacique percebendo a dor de seu filho foi ao Pajé, grande
feiticeiro, que já percebera a paixão do jovem pela filha do visitante. O
Feiticeiro, comovido, preparou um feitiço poderoso e para tal usou a cabeça do
coró, peixe muito saboroso que podia ser encontrado, facilmente, na foz do Rio
Coreaú. Disse ao Cacique que esse feitiço deveria ser dado ao Grande Guerreiro
Branco pai de Jacira. Alertou também que o efeito não era instantâneo e que
eles partiriam mas, com o passar de muitas luas, voltariam...
Assim foi feito na
véspera da partida. Um caldo feito da cabeça do peixe enfeitiçado foi servido,
não só para o Grande Guerreiro Branco, mas também, para toda a tripulação do
barco visitante.
No dia seguinte, após
muito choro, eles partiram com muitas lágrimas de todos os lados. A princesa
Jacira chorava debruçada na popa do barco e o triste Jovem Guerreiro, com um
forte nó na garganta, se angustiava mesmo consolado pelo pai e pelo Pajé.
Muitas luas se
passaram e, certo dia, antes que os cajueiros florissem novamente, um menino
índio chegou na oca do Grande Cacique, resfolegando, e dizendo: O grande barco
voltou! Está lá!
Correram todos para a
beira da praia e viram, no horizonte, o navio que crescia vagarosamente aos
olhos do Cacique, de seu apaixonado filho e de toda tribo.
O desembarque foi festivo!
O Grande Guerreiro Branco trouxera consigo Jacira e disse aos Índios que não
partiria mais.
Estes visitantes
fundaram uma grande sociedade às margens do Rio Coreaú que levou o nome de
Camocim.
Tempos depois, o
grande chefe, numa reunião de confraternização contou a todos a Lenda do Coró,
pois que aqueles que tomarem do caldo da cabeça desse peixe, sempre voltavam ao
paraíso encantado de Camocim para viver um grande sonho!
Ainda hoje, o feitiço
está ativo e os visitantes que comem deste peixe encantado, sempre voltam e,
alguns que se excedem no consumo dele, nem partem...
IMPOSSIVEL
AMOR
Os Silvícolas camuflados pela densa folhagem da vegetação ribeirinha esperavam entre atônitos e impacientes pela passagem do estranho barco que há muito assomara da curvatura daquele mar tormentoso de setembro. As belas, antes miúdas, vistas em alta manha por um grupo de curumins que pescava alegremente seus corós, agora tomavam dimensões enormes com aquele torreame de pano que chegava a riscar o céu, mais parecendo enorme gaivota que voasse em longo do Rio da Cruz; a envergadura das asas quase abarcando a longitude das margens de tão grande. O brigue, aos olhos dos tapuias, era algo descomunal comparado as suas igaras. Um monstro que ia deixando em sua translação um esteira caudalosa, espumante, cujas maretas a despeito da vastidão entre as beiras, iam bater violentas de encontro aos seus barrancos. À sua passagem, pássaros assustados batiam asas em revoada, com gritos de pavor, e os bichos fugiam para o interior da mata, bufando, com sobrosso! De longe se via o abrir e o fechar da folhagem e as rabanadas das vergônteas, seguindo-se do estrondo da galharia partida. Só os guerreiros permaneciam invisíveis, em coniventes esconderijos, esperando um sinal do grande chefe Tiúma.
Da gávea, um marinheiro flamengo
passava informações ao contraste, enquanto o outro, pela a proa, ia sondando a
profundidade do rio em meticulosa batimetria. As falas confusas, os comandos,
as conversas, tudo era estranho ao povo Tapuia... Uma barafunda de vozes e
gestos! Quem diabos seriam e o que queriam eles!?... O rio de repente ficou
perigosamente raso (mais um pouco e passava-se a vau), por isso a um movimento
do homem encarregado da medição, arriou-se o pesado ferro que, dado o impacto e
a pouca profundidade, fez com que uma densa e escura nuvem de lama assomasse à
tona. Agora já estavam há umas quatro léguas acima do estuário, e os
selváticos, desde lá, os seguiam de perto, sempre amparados pela densa folhagem
ora das tatajubas e dos paus-violeta, ora dos manguezais.
Após as necessárias manobras para
um fundear seguro, um escaler foi baixado por
bombordo e pó ali uns cinco homens, armados de mosquetes, bacamartes e facões,
descerem a terra para reconhecimento. Porem mal adentraram na floresta, foram
emboscados pelos guerreiros. Um soldado levou a arma à altura do rosto para
atirar, mas uma flecha sibilou furando o ar e a mão do infausto militar. Os demais,
tolhidos pelo inesperado do momento, ficaram como que chumbados ao chão,
inertes, os olhos arregalados de terror ante o pavoroso e iminente perigo.
Então um jovem guerreiro tapuia, de nome Guarassy, desobedecendo ao chefe, não
se sabe o porquê (talvez pela própria juventude), retesou seu arco, mas a
flecha varou o infinito do céu, pois ele, entre a ação e o desfecho, foi
sacudido por violento safanão do chefe que, desse modo, desviara a trajetória
mortal daquela seta. Isto apareceu para os invasores (e era) um pacto de não
agressão pelos nativos. Passados esses incidentes e depois de avanços e recuos
nas abordagens do contato, finalmente os aborígines e batavos entravam num
entendimento. Isto não obstante um sem-número de marchas e contra marchas, esquivas,
negaças e desconfianças de ambos os lados, principalmente pelo o povo das matas
ante aquela estranha arma que vomitava fogo e roncava que nem trovão.
Depois de tais escaramuças, os
estranhos foram finalmente introduzidos na aldeia, para um pequeno banquete de
desagravo, e logo rodeados pelos curumins em medonha algazarra, que puxavam as
abotoaduras dos uniformes dos soldados a ponto de arrancá-las; outros tiravam
os chapéus aos homens e saiam numa correria sem fim, passando-os de mão em mão,
em gritaria. Os holandeses ensaiavam um sorriso esforçado, quase um esgar! Pois
Cluyt, o comandante, recomendaria calma e cuidado. A qualquer movimento bruto,
podiam fazer-se nos bacamartes. Isto, porem, só em extrema situação de perigo.
Entretanto nenhuma ação belicosa foi necessária, que os Tapuias, embora de
natureza beligerante, não eram dados a traições e sabiam ser hospitaleiros com
seus convidados, coisa bem diferente de outros povos indígenas. A paz reinava
afinal entre invasores e selváticos, se é que pode haver paz com um inimigo me
potencial que vem morar ao lado!
Uma imensa fogueira ardia no
pátio da maloca, e a noite brasileira enchia de trevas tudo o mais. Os
estrangeiros, cinquenta almas ao todo, sentados em longas esteiras de palha de
carnaúba, sob os gritos e pios da fauna noturna tropical, pois agora, enfim, as
traquinagens dos pequenos serenara, comia peixe assado e macaxeira, o que era
bom para desenfastiar as conversas, dos charques e dos chouriços... Arre,
afinal foram quase trinta dias de mar! Os nativos, por sua vez, muito deles,
miravam-se admirados mos espelhos ou conferiam as quinquilharias e lantejoulas
como se fosse um bando de meninos em seus brinquedos (presentes trazidos pelos
neerlandeses aos gentios). Ao chefe foi dado um machado, uma pá e um alfanje.
As mulheres ganham também seus mimos: ruges e outras coisas mais necessárias a
vaidade feminina, mesmo entre as nativas das bárbaras terras do Siará Grande!
Depois da ceia, o cauim foi servido em pequenas cuités... Uma lua em forma de arco
se elevou das matas e o sono tomou conta de todos, exceto de Natira, filha do
chefe indígena, e Jacob, um tenente da guarnição.
No outro dia, Cluyt auxiliado por
um intérprete, disse ao morubixaba, que o conde Mauricio de Nassau, dadas as
incursões dos normados por estas bandas no contrabando do sal e do pau violeta
(resquício da tal França Equinocial que não vingara em São Luis) queria fazer
uma aliança com o Grande Chefe para a expulsão dos renitentes gauleses das
costas do Siará e posterior marcha contra André Vidal de Negreiros, no
Maranhão. Para Tanto era mister a edificação de um forte ao longo do Camocy, de
onde as tropas seguiram para aquelas bandas por terra, através da Ibiapaba. O
forte seria um apoio logístico naquela difícil empreitada.
O chefe avaliou as
possibilidades, bem como a potencia daquelas armas que cuspiam fogo, e
aquiesceu. Afinal era sensato, e os invasores não se cansavam de demonstrar o
poder de destruição dos seus mosquetes: se aparecia um animal, eles
descarregavam uma carga de chumbo no pobre infeliz. O bicho, por maior que
fosse, caia em cima do rastro já estirando as pernas e espumando, o sangue em
bica da mortal ferida. Assim, dois dias depois da decisão do chefe Tiúma, eles
tornaram o rio acima ao local do ancoradouro, seguidos que foram por alguns
nativos que se deixaram subornar pelo brilho das quinquilharias, apara abrir
aceiros e variantes necessários ao desbaste de um elevado que ficava a uns cem
metros da margem esquerda do rio, olhando para a foz. Em duas semanas fizeram
queimadas e coivaras, aplainaram o chão, fincaram grossos troncos de tatajuba,
e entre eles a taipa e o estuque, não se aquecendo das portinholas para o fogo
das clavinas. Em menos de um mês aquela fortificação de aspecto rude e
assombroso havia sido concluída.
Agora que tudo estava pronto, era
o comandante batavo deixar a metade dos seus homens sob as ordens do tenente
Jacob e aguar as velas no rumo de Olinda, para dar ciência ao Conde Mauricio de
Nassau da aliança com a nação Tapuia, da feitura do forte, o melhor de tudo,
dar ao governador a noticia daquele mar de sal que se amontoava ao longo de
quase todo o Rio da Cruz ouCommeni por salgados e salgados
intermináveis. Isto sem falar das florestas da Tatajubas e paus-violeta. A
julgar pelos seus modestos cálculos, era carregamento para mais de mil
sumacas... Uma fortuna para a Companhia das Índias Ocidentais! Uma fortuna!
Quando o Brack levantou ferro e
se fez no rio, buscando a foz, antes da Piriquara, alguns homens da guarnição
do forte já tinham uns olhos de saudade postos nas velas e com lenços acenavam
mil adeuses! Havia no mais deles um como enfaro pela monotonia das coisas
daquelas selvas, uma rotina modorrenta, uma inanição, um eterno arrastar-se, um
não ter o que fazer... tudo tão diferente das ruas fervilhantes de Olinda...
Quando a belonave passou pela a aldeia, rio baixo em demanda de Pernambuco, o
comandante deu uma salva de não sei quantos tiros. Sabe-se lá o porque? Talvez
para reforçar os pactos feitos com os indígenas. Ao estrondo das armas, uma
nuvem de ariscos maçaricos e estridente periquitos não ficou para ver a nuvem
de fumaça da pólvora comburida, e o pobre do pajé, sensitivo que só ele, sentiu
lá nele um arrepio pela “espinha”. Naquele instante, Jacob reunia seus homens
para a primeira ordem do dia naquela fortificação, sob o retumbar dos tiros
pelos boqueirões da Ibiapaba.
Guarassy, sempre brincalhão, de
repente dera para andar capiongo. Umfarnesim consumindo-lhe todo,
um nó pelo peito, um tédio devorando-lhe o ser. Agora era aquele eterno cismar,
aquelas ausências da maloca para se embrenhar nas matas, pensativo, deitado em
cima da algum galho de pau, olhando vagamente o infinito. Era o consumir-se em
pensamentos desconexos, em coisas abstratas. Isto desde a chegada daquele povo
de Holanda. Nem Ajurucuruca, seu papagaio de estimação, já não o
tirava daquele marasmo. E que ele amava em segredo, é certo, mas amava... Amava
Natira. E quem ama, embora platonicamente, tem medo de perder aquele amor que
não é seu. Era um sentimento novo e estranho aquele que lhe invadia o peito: O
medo de perder o que não tinha! “porque tantas duvidas o assaltaram agora?”
pensava. Acaso não havia um magote de pretensas companheiras para ele? Ate
mesmo Moema, irmã de Natira, já não o procurara para uma entrevista amorosa?
Então, porque tento sofrimento? Ah! O coração, quem o entenderá um dia!?
Natira desde aquela noite que
servia o cauim a Jacob, sentia-se invadida por uma sensação maravilhosa, uma
coisa indescritível. De repente, as flores eram mais belas e tinham mais
perfume. O vento agora parecia vir afagar-lhe os cabelos negros, negros e
enroscar-se pela nuca esgalga, dali descendo aos seios em insinuantes
redemoinhos. Os pássaros treinavam um inédito e mavioso canto, de lirismo
profundo e contagiante, isto sob um céu vestido do mais belo azul. Os bichos,
mesmo os mais brutos, repentinamente adquiriram um não sei que de graças e
encantamento. Ate mesmo os Anuns, de voo estabanado, já não faziam aquela
sinuosidade desgraciosa, pois deslizavam suavemente pelo céu em surpreendente
remígio a sua passagem. E ela, em passeio matinal, sentia que os ramos dos mais
finos galhos pareciam alongar-se somente para tocá-la, e ultimamente, quando ia
banhar-se nos riachos, os peixinhos davam voltas ao seu redor em cambalhotas e
piruetas como se brincassem de roda... De repente descobrira seu corpo. Nele
havia coisas que sempre estiveram ali olvidadas e só tardiamente percebidas.
Agora era um mirar-se embevecida no espelho horas a fio e um sentir-se cada vez
mais bela, pois sua imagem refletida na película metálica daquela caixinha
mágica era perfeita. Ali era retratada com fidelidade em cada traço, em cada
linha, e em cada curva. Ate nas covinhas da face e no retorno das maças do
rosto... Coisa bem diferente da projeção de sua sombra pela luz do fogo ou do
reflexo que via na cuia d’água de outrora.
Jacob não mais conciliava o sono.
Rolava no leito como se bocas invisíveis o mordessem. Agora era aquilo,
deitava-se, mais ficava na vigília e, na sucessão dos segundos, ouvia a troca
da guarda, a rendição do quarto, a rebeldia das botas dos soldados em ordem
unida em demanda das guaritas e postos de guarda... “Um... dois... três...
Alto! Cobrir! Ordinário! Marcha!”. Só pela madrugada finalmente adormecia, isto
porque o cansaço do corpo sobrepunha-se a mente. E que ele amava e quem ama
fica assim mesmo, como que perdido no tempo e no espaço. Sim, amava Natira.
Amava-a com a força de todos os sentidos. E aquilo era um sentimento novo, pois
nunca antes se entregara as paixões. É certo que tivera um caso ali, outro
acolá. Um na vida, outro na morte! Só isto. Coisa mais sem futuro ou
compromisso! Pois era a carreira militar e seu ideal. A academia e os
treinamentos vinham por complementos. Enfim as longas ausências: um dia aqui,
outro não se sabe onde! Como poderia harmonizar-se com o amor? Talvez por isso
mesmo abraçara a espada por esposa e por companheira, a solidão. mas desde que
vira a bela Natira, era aquele sonhar acordado, era aquele desassossego,
era aquele embaraço no peito, eram aqueles sustenidos e bemóis nas cordas do
coração. Um a coisa que nem ele que sentia sabia explicar.
Pela quarta rua da ocupação do
forte, Tiúma mandou convidar Jacob para um banquete. Era o rio que dava peixe
como nunca, camurim, pescada, pirapema, saúna, garoupa etc. Os cardumes eram
tantos e tão variados que muitas vezes a própria sombra da Igara os espantava e
muitos deles erravam o salto, indo cair diretamente no fundo da canoa, já nem
dava gosto pescar. A caça também estava favorável. Os caititus, as queixadas e
as pacas andavam aos bandos, pelas trilhas, descuidados, deixando-se caçar...
Os potes também andavam abarrotados de aluá, chega suavam. Isto sem falar no
cauim que descansavam nas cuités.
Jacob por mais que tenta se, não
conseguia tirara os olhos da sua eleita. Aqueles olhos negros eram agora sua
cegueira, era o norte da sua vida, eram o farol da sua Alexandria, eram o
caminho da sua salvação. Uma, duas, três... Não sei quantas vezes ele os mirava
e remirava-os, e ela, dissimuladamente (coisa de mulher que se faz difícil, ou
que tem o pressentimento de que alguém a vigia) baixava a vista ou se desviava
do fogo dos olhos do amante.
Um animal de grande porte assava
no braseiro. Jacob não sabia direito que bicho era, que mal reparara no quitute
(os olhos dele eram só para a jovem Tapuia), mas pelo chiado da gordura
pingando na brasa, acendendo labaredas, devia ser um porco do mato. O cheiro
era bom e o assado estava aponto de ser servido. Os cachorros, sentados sobre
as patas traseiras, salivavam pelos cantos da boca, os olhos durinhos na carne
apetitosa, enquanto os curumins, esfomeados como tudo que é menino, deitavam o
sarrabulho sobre a própria brasa e mal deixavam sapecar. Pegavam nacos ardentes
de rins e coração e saiam aos pulos, queimando o céu da boca, gritando de dor.
Noutras fogueiras, mulheres espetavam muitos e variados peixes. Era uma festa!
Natira veio trazer-lhe outra cuia
de cauim, mas chegou tão perto de Jacob de modo que ele sentia ate o morno
anélito de sua boca, o arfar do seu seio e as batidas do seu coração. Ali
pastada em sua frente, ele olhava através daqueles olhos negro, sondando onde
se escondia a sua alma, procurando respostas para seu amor, e quando ela
estendeu-lhe a cuia, ele pegou também suas mãos gélidas e tremulas, numa fugace
caricia. Natira fechou a porta em clara aquiescência do carinho e tudo foi
muito rápido e imperceptível para quase toda a tribo, pois que ela logo
desapareceu dentro da taba, quase a correr, o peito em brasa e uma chama
escorrendo-lhe da face, porem graciosa como a gazela. Durante a festa ainda
apareceu umas duas a três vezes, sempre com um olhar furtivo e condescende para
o tenente.
A rotina do forte, como foi
visto, era entediante, por isso Jacob frequentemente saia pela a mata para um
entretenimento com os pássaros variegados, ou com os bichos miúdos de fauna
mais diversa; quando nada, a diverti-se com a exuberância da flora, não
obstante aos muitos perigos, que toda a selva encerra. Um dia desses salvara-se
por pouco das garras de enorme onça pintada. A bicha vinha em seu encalço,
farejando; mas de repente metera-se em de mata a dentro, espantada, num arrufo!
Que diabos teria visto a felina? De qualquer modo foi um alivio para Jacob, que
dado o inusitado e a brevidade o momento, quase nem teve tempo de sentir medo,
mas ainda deu uns tiros pro ar, por segurança, de modo a espantar a bichana pra
bem longe.
Agora era isto, inventara de
caçar uns passarinhos, de fazer umas tocais para gato maracajá, de armar uns
laços para pacas... coisas mais para iludir o coração que teimava em amar
aquela filha as matas! De uma feita, quando inspecionava as armadilhas, ouvi-o
um chiado na toalha, um burburinho, um quer que fosse. Virou-se bruscamente e
já de mosquete em punho, o cão engatilhado, a fecharia no ponto de descarga.
Quase fez “uma arte!”... Era o seu grande amor, Natira! Ela, sem que ele
soubesse, muitas vezes o seguia naquelas incursões e da camuflagem das folhas
olhava-o com interesse, pois o amava também perdidamente. Agora quem estava
ali, frente a frente, longe de olhos intrusos, na conivência e cumplicidade das
matas, isto sem falar da alcovitagem das folhas secas pelo chão. Nem bem se
olharam, pois ela esquecendo qualquer pudor, e ele ignorando qualquer razão,
lançaram-se, a um só tempo, um nos braços do outro. Ela sentia uma como
brasa incendiar-lhe o ser, um como calafrio percorrer-lhe o corpo, em que
der tremores e excitação. Os seios, que de pequenos viviam a desafiar a lei da
gravidade, agora de rijos latejavam, enquanto na boca secava-se a salivação.
Natira gritava, gemia, chorava não se sabe por quê! Contorcia-se mordiscava o
ombro do companheiro, entregava-se e recebia numa roca de afeto e felicidade.
Escambos dos amantes... De repente era mulher! Agora, calma, saciada do cio,
serenavam nela aqueles sentimento dualistas como e correr e ficar parada, de
chorar e de sorrir, de gritar e ficar muda. Coisas do ritual do amor quase se
fundem numa só, mesmo em face de tanta ambivalência, coisas que ate instantes
atrás ela desconhecia. Agora, acostumado aquele ato, era aninhar-se no peito de
Jacob, como um bichinho enjeitado que procura afeição em outro ser diferente de
sua especie. Enfim era mulher.
Guarassy, que presenciara toda a
cena dos amantes, corria pela mata galhos nos peitos, esmagando vergônteas,
derrubando paus e lanços de paliças, levando tudo de eito! Os pés retalhados de
jurema, de mandacaru, de cansanção, de sabia, de urtiga... de tudo quanto não
prestava! As têmporas latejando, querendo explodir. Um mal-estar inominável! E
que ele, desconfiado com as freqüentes ausências de sua suposta amada, dera de
segui-la para ver onde aquilo ia dar e deu no que deu como foi posto. De onde
os observava, teve vontade de matá-los, de estraçalhá-los e botar os pequeninos
pedaços aos urubus. Ainda deu alguns passos de lança riste pra vara-lhes os
corpos, mas não teve a necessária coragem, que o amor por Natira falou mais
alto no tribunal de sua consciência. Naquele instante, entre a loucura e a
razão, pois já não sabia onde aquela começava e terminava esta, lançou de se o
arco, a lança e o tacape e saiu em desabalada carreira em busca do nada, do
vaio! Correu, correu, correu ate aonde não pode mais correr, onde as pernas, de
bambas, deixaram que aquele corpo maltratado se arria-se sobre elas. Ali, por
sobre xiquexiques, cardos e malicias desmaiou de exaustão e teve pesadelos; mas
quando recobrou os sentidos tinha um propósito na mente: roubar a alma a quem
roubara seu amor. Palavra de tapuia. Ate jurou pelo seu Deus.
Desde então Guarassy ensejava uma maneira de
cumprir ensejava uma maneira de cumprir aquela funesta promessa, de um arreglo
com o tenente. Fez vários planos, todos sem fundamento! Emboscaria o tenente e
o varava com uma flechada mortal. Sim, era isto mesmo! Mas logo depois voltava
atrás. Que graça teria matar aquele diabo como se mata um cão? Tinha que ser
cara a cara, olho no olho, e se possível, lentamente, para o invasor sentir na
pele cada estagio de sua terrível vingança, de sua maldade.
O tempo passava e a medida do tempo não dava para medir o amor dos amantes nem
a ira da paixão do suposto traído. Era necessária urgência nos planos mais vis
do enamorado e, antes da lua nova, o batavo encontraria o seu destino.
Guarassy, não que fosse covarde, mas avaliando melhor o poder letífero daquela
arma que cuspia fogo e tinha o ronco do trovão, chegou a conclusão de que não
poderia enfrentar o sedutor em campo aberto. Finalmente engendrou um plano
satisfatório: arranjaria uns sequazes e amparos pela conivência da
escuridão da noite, atacariam o forte, em surdina, e matariam a todos. Assim,
alem da sua vingança pessoal, livraria seu povo de ameaça dissimulada dos
estranhos e, de modo particular, da lascívia do fornicador. Nada contaria ao
chefe, mas ele, por certo, ficaria aliviado quando enfim soubesse do ocorrido,
pois ao que parecia, o grande chefe Tiúma não andava nada satisfeito com aquela
intromissão dos holandeses. Se tudo desse certo, talvez ate fosse aclamado
herói de seu povo. Mas agora era manter o mais absoluto segredo, pois disto
dependia o êxito do seu terrível plano. Assim, na noite aprazada, cinqüenta
sombras resvalavam entre as ocas, em demanda da fortificação. A distancia entre
o forte e a aldeia foi vencida sem embargo e agora os índios, quais sinistros
espectros, esgueiravam-se entre as macegas para tomar banho de assalto e
bastidão. Estavam tão perto dos portões que dava para ver o contorno do rosto
das sentinelas quando estas tiravam baforadas de seus cigarros pés-duros e
ouvia-se lhes mesmo a respiração, o mais das vezes entrecortada pela tosse dos
fumantes. Todos estavam a postos, soldados e salteadores, e a um sinal do chefe
destes, uma nuvem de flechas assobiou um silvo de morte em elíptica trajetória.
Num instante as sentinelas contorciam-se de dor e os que dormiam eram varados
no próprio leito por incisivas lanças, menos o comandante, que fora
cuidadosamente poupado para um trágico desfecho.
Jacob, que já estava entre vigília e o sono, ouvira, estremunhado, um quer que
fosse, um ruído abafado, uns gritos sufocados, um principio de alarido. Cuidou
na ilusão dos sentimentos que sonhava, mas logo percebeu o engano. Aquilo era
um pesadelo bem real, um matraquear de passos num estranho ritual, umas vozes
confusas, um alarido, um cantar de bárbaros, um embate de corpos numa dança
estranha, desconexa... Abriu a porta já de arma em punho para ver o que era,
mas uma dor aguda trespassou-lhe a mão, e o clavinote voou e se perdeu nas
trevas, e um liquido quente que pingava entre os dedos... e a seta era um
adorno que enfeiava a mão. Guarassy falou la na sua linguagem de índio, das
infâmias do invasor e do castigo final. A um sinal, fez-se um circulo ao redor
do amante enquanto o suposto ofendido aproximava-se ameaçadora e perigosamente.
Jacob fez menção de puxar de uma adaga que sempre trazia presa a cintura, para
defender-se em situações desesperadoras, mas o esforço foi em vão que tinha a
mão paralisada pelo embaraço da flecha mortal. Foi ai que recebeu violenta
bordoada do tacape do índio apaixonado, caindo sem sentido. Quando deu acordo
de se, estava amarrado num mourão para ser alvo das setas de Guarassy. “Ele é
meu”. Dizendo isto todos se afastaram e então começou a sessão de tortura com a
qual havia sonhado dias e dias o ofendido índio: uma morte lenta e dolorosa. A
primeira flecha ainda sã do tenente, que incontinente mostrou o siso numa
careta de dor. Zapt! E a segunda foi cravar-se numa coxa, roçando ligeiramente
o fêmur. Uma terceira se instalou na mesma altura do membro, do outro lado.
Outra veio zunindo cravar-se ao ombro. Nisto o militar desmaiou pela segunda
vez. O sanguinário guerreiro berrou um palavrão e ordenou que o reanimassem,
pois assim não haviam , pois assim não havia mais graça naquilo. Com muito
custo, conseguiram que Jacob abrisse os olhos já embaciados, mas ainda para ver
mais uma flechar cravar-se no seu ser, tudo em lugares cuidadosamente
escolhidos para uma morte demorada. “os utensílios de castração!”, gritou
alguém do bando. Nisto uma flecha certeira, não se sabe de onde, varou a
garganta de Guarassy e uma outra atravessou-lhe o peito. Ele caiu ali, já nos
estertores, que a uyba partiu-lhe ao meio o coração. Os outros
recuaram uns passos quando ouviram a voz irada de Natira. Um deles fez menção
de revide, no que foi varado com a rapidez de um raio por duas flechas quase
que simultâneas. É que ela alem de boa atiradora tinha a seu favor o amparo da
mata e a escuridão da noite. Alguém ainda tentou alguma coisa, mas teve o mesmo
fim do seu companheiro. Os demais guerreiros sobrevivente, vendo que Guarassy
expirara, deram por findo o litígio. Aquilo agora era uma guerra infundada, que
já se dava entre irmãos. Assim, deixaram de lado tal capricho e foram engolidos
pelas trevas no rumo da aldeia, contabilizando os mortos.
Ela então abandonou o esconderijo de onde estivera e correu para o seu amado,
a ver se ainda vivia. Ainda bem que lhe valera a desconfiança de que
Guarassy tramava alguma coisa para aquela noite. Foi Tupã quem o guiou ate ali.
Jacob respirava com dificuldade e uma fita de sangue corria-lhe da boca, isso
sem embarco dos borbotões espumantes que jorravam dos diversos ferimentos. Não
foi sem embaraço que a destemida guerreira removeu aquele mar de setas do seu
corpo e deitou no leito que sabe da vida ou talvez da morte.
Ainda limpava as feridas e fazia bandagens com a entre casca da aroeira e do
mofumbo quando ouviu um tropel. Virou-se com a velocidade do pensamento, o arco
já de todo retesado, a ponto de atirar: Era Tiúma que vinha a frente do
conselho da tribo. Natira abaixou o arco não acreditava nalguma violência do
pai contra si, mesmo a despeito dos acontecimentos da noite anterior. O chefe
fez uso da palavra, e ela ouviu do conselho, através do seu pai, que já de tudo
sabia a terrível sentença: teria de partir de imediatamente da tribo, para
nunca mais voltar, andar sem rumo e a ermo pelas grotas, furnas e quebrada de
serra, já que ferira de morte um seu irmão, sangue do seu sangue e corda do seu
coração. Pois se assim não se cumprisse, qualquer um poderia tirar-lhe a vida,
avistada que fosse depois da segunda lua a partir do veredicto. Porem, por ser
sua filha e ele por ser seu pai, fora-lhe concedido um indulto: não seria
atacada desde que não se aproximasse menos de duas léguas da aldeia. Era partir
imediatamente e levar seu homem branco para viver com ele, ou os restos mortais
dele para enterrá-los fora dos limites estabelecidos. Nisto era preciso pressa,
que pelo meio dia viria para atear fogo ao forte, apagando, assim, desta vez,
quaisquer lembranças daqueles invasores. Isto posto, os índios retrocederam e
ela, a muito custo, botou seu homem numa igara e desceu o rio em demanda da
barra. Principiava o inverno e com a calmaria dava pra ir por mar ateJuraracoara, que
na sua língua queria dizer buraco das tartarugas. Por la estaria bem guardada.
Tencionava ficar o mais longe possível do seu povo, pois tinha receio que algum
dos guerreiros sobreviventes desobedecesse ao chefe, indo atacá-la no seu
canto. Depois que o tempo olvidasse as intrigas, voltaria para mais perto.
Agora, porem, com tantas feridas abertas, a distancia era a coisa mais
prudente.
A canoa deslizava pelo o espelho das águas do Rio da Cruz ao surdo som do remo
que deixava atrás de si redemoinhos que se desfaziam na correnteza. Natira
desfazia-se em suor pelo esforço, enquanto seu homem, deitado no fundo da
embarcação, também suava em bica, tremendo e delirando, pela a febre advinda
dos ferimentos. Mas parece que desta vez não morreria. A aroeira era um santo
remédio!
Pela tardinha, depois de uma ultima volta no rio, descortinou-se o mar aberto.
Era o caminho de Juraracoara, mas a noite se avizinhava e um
temporal ameaçador levantou-se do nascente. De repente, raios colubreavam pelo
céu e grossos pingos começavam a cair tamborilando na água. Era necessário
parar. Então a jovem índia rumou para a margem direita, procurando um abrigo
natural contra a chuva que se preparava e a temível cruviana da madrugada. Não
andou muito e encontrou uns buracos escavados pela a erosão do vento. Um lugar
quase perfeito para o pouso. Ali encostou a igara já sob o incomodo dos pingos
da chuva diluviana que se anunciava. Foi o tempo de arrastar seu homem e
acomodá-lo o melhor que pôde na toca... Então um mar d'água desabou sobre a
terra!
Ali, do outro lado da margem, ela se sentia segura, ainda mais com todo aquele
toro e a saraivada de raios cuspidos do céu. Quem, por mais sede de vingança
que tivesse se aventuraria contra tanta água e tanto fogo? Pensando melhor,
quem iria desobedecer ao conselho? Regras foram feitas para ser cumpridas. Alem
do mais havia aquele mundo d'água a lhes separar dos outros. Pensando melhor,
talvez ate fizesse por ali mesmo. Pela manhã queria fazer o reconhecimento do
terreno pra ver no que dava... alta noite a chuva amainou e Natira botou a
cabeça fora para avaliar o tempo. O temporal ainda recrudesceria com certeza, a
falta de astros na abóbada celeste confirmava isso. Porem longe, bem longe,
para as bandas do sul, havia um vermelho no céu. Por certo era a forte que
agonizava pelo fogo ou um raio jogado por Tupã. Fosse o que fosse já não
interessava mais... Agora era cuidar do seu homem.
Jacob deixou escapar um gemido em frases desconexas. O suor agora lhe empapava
toda a roupa e bagas, mil delas, e formavam em sua testa. A companheira avaliou
com a costas da mão e temperatura do enfermo. Estava perigosamente elevada, mas
o fato de ele gemer e de falar era um bom sinal. Era de alguma forma ou recuo
do tenebroso reino da morte. Ela meteu a mão no uru, remexendo-o la no fundo e
dali tirando uma beberagem que em menina aprendera com a sua mãe. Fez chegar a
cabaça aos lábios ressecados e fendidos pela febre e não sem custo constatou
que o doente bebera uns pequenos goles. Era uma vitoria da vida contra a morte.
Dai a pouco a chuva, como era de se esperar, voltou ainda mais forte, agora,
porem, sem os relâmpagos e trovoes, mas com um vento que zunia nas reentrâncias
dos buracos pelos pés dos morros. De repente parece que ouvira alguém que
chamava: “Natira! Natira!”. Seria a voz de Jacob? Disto não sabia a certo, bem
que poderia ter sido o vento. Porem entre a duvida e a certeza, acercou-se do
moribundo e ali, ao seu lado, adormeceu.
O dia amanheceu como se fosse verão. Os espelhos da água se refletiam a luz do
sol. A chuva, assim como chegara, se fora para longe e pela margem um cardume
de pequenos peixes comia o plâncton trazido pela corrente barrenta que descia
das cabeceiras do rio, La bem depois da Macaboqueira. A vista do lugar era bela
e sugeria paz. Ainda mais sangravam. Aqui e ali uma escara. Enfim processava-se
a cicatrização. “Aroeira, um santo remédio” pensava a silvícola com entusiasmo.
Então melhor seria ir ficando por ali mesmo, pelo menos durante a recuperação
do seu amado.
 medida que o tempo passava, diminuía o pavor da jovem guerreira de ser
atacada pelos seus. A ordem prevalecera. O chefe Tiúma tinha poder. Era esperar
o completo restabelecimento do seu homem, o que se dava a longos passos. Antes
de duas luas estaria curado! Nisto agora botava fé.
Jacob experimentou os primeiros passos, embora apoiado em sua companheira de
infortúnio por um lado e para o outro, com o arrimo de um bastão. Ainda estava
trôpego que nem um velho, ou um menino que ensaia os primeiros passos, mas
andava, e isto era muito bom para a mulher, que via seu esforço e dedicação
recompensados. Foi estabelecido um limite para a caminhada inicial, o qual
deveria ser exercido a cada três dias. Assim, em menos tempo do que se
esperava, Jacob recuperou por completo os movimentos. Agora era não descuidar
da alimentação, criar sangue novo, pegar cor, pois que de branco mais parecia
um cueiro madapolão.
Um mês depois o homem já era bem outro. Se preciso fosse, seria capaz ate de
escaramuçar pelos morros, e não é que ate um tom rosado tinha voltado pela
face!. De toda aquela violência a que fora exposto, só restaram as cicatrizes
pelo o corpo e pela a alma... Nada mais!
Natira já não pensava mais naquela terra distante de juraracoara e
Jacob nem mais empenho fazia no aparecimento de um navio que o levasse de volta
a civilização da velha Europa, mais precisamente a cidade de Arnhem, sua terra
natal. Outro dia, vendo lagrimas na amante, que pensava o pior, entendeu que
ela temia perdê-lo e, naquele instante, comovido, ate mesmo jurara a Natira que
se uma chalupa de repente aparecesse pela a barra, nela não embarcaria jamais,
que agora tinha raízes fincadas no seu coração e semente plantadas naquela
terra. Mesmo quando o brigue voltasse, se algum dia voltasse para buscá-lo, ele
não daria os ares de sua graça por lá. Seria por certo contato entre os mortos!
Desistira, em fim, da caserna, da Companhia das Índias, dos amigos, da
Holanda... de tudo neste mundo só pelo o amor de Natira. Isto desde aquela
noite do cauim! Ah, o amor, quem poderá compreendê-lo um dia?
Nos dias que se seguiram, descobriu que aquela vastidão de terra era uma ilha,
uma ilha só deles, um grande ninho de amor! Um lugar aprazível para os deleites
da paixão. Todos os amantes sonham em ter uma ilha, mas são poucos os que não
despertam deste sonho. Aquele casal de amantes fazia parte desses felizardos.
As noites invernosas eram longas e apaixonantes e eles aproveitam da noite a
cada instante, cada minuto, cada segundo, como se o dia por si só já não
bastasse ao coloquio amoroso entre os dois. Eram aqueles banhos intermináveis
nas lagoas que se formavam na barriga dos morros, eram aquelas caricias que não
tinham mais fim, eram aqueles toques sensuais, eram aqueles dedos que
adivinhavam desejos, eram aqueles olhos que inventavam formas, eram aqueles
beijos apaixonados e mil outras maneiras possíveis de amar e ser amado. Assim
era natural que acontecesse o que acontece quando se juntam dois amantes: a
concepção. E antes do fim daquele ano em decurso, nasce um menino robusto,
sadio, com traços característicos menos do pai do que da mãe, o qual, num
ritual indígena, recebeu o nome de Tremembé. Naquela ocasião, porque era
e não poderia deixar se for, Natira deu também aquele paraíso terrestre,
perdido desde os tempos priscos de Adão e Eva, mas agora encontrado pelos dois,
o nome de Ypaumoraussuba, o que Jacob, que se iniciava na língua de sua
amada, traduziu por “Ilha do Amor”.
Como tanto amor era natural que viessem muitos, muitos, muitos curumins! (e
vieram, ao montes!). Um, Dois, Três... Sei la quantos “assim como os próprios
números aquela conta não acabou mais”.
Entretanto, para não macular aquela terra – santuário dos amantes – os
enamorados decidiram mudar-se para a outra margem do rio, deixando aquele
paraíso para as fugas amorosas, para os toques de Eros, para as caricias
extremas, para a lassidão após os embates da paixão... Lançando, assim, os
fundamentos da aldeia que viria a ser a cidade de Camocim que, fiel as suas
origens, tem todo esse romantismo, todo esse encantamento, todo esse clima de
paixão pelas ruas, praças e logradouros, principalmente na pracinha que
leva em seu nome essa carga de sentimentos: A Pracinha do Amor, onde é sempre
possível encontrar-se um casal de namorados nos idílios de um romance da já não
tem fim, mirando ao certo o outro lado do Rio da Cruz, fascinados pela magia
daquele paraíso que um dia deu abrigo a Natira e Jacob!
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